domingo, 23 de março de 2014

O Canto Orfeônico | Arthur Loureiro

O canto orfeônico surgiu na Europa do século XIX como um projeto de educadores que desejavam mudar os padrões estéticos das classes sociais menos favorecidas. Os Estados nacionais europeus do século XIX queriam ensinar o povo a ler, a escrever e a contar. Logo acrescentaram o cantar, pretendendo cultivar costumes e uma moral “civilizada” na população. A palavra orphéon (orfeão) surgiu em 1831, designando um grupo vocal escolar de Paris em atividade desde 1819. A oficialização do Canto Orfeônico nos currículos franceses ocorreu em 1833.

O nome foi inspirado no deus grego Orfeu, que encantava e amansava as feras com sua música. Tal como na lenda, os educadores do século XIX queriam “amansar” o povo – comparado às feras perigosas – por meio do canto. Consideravam que as classes populares ameaçavam a ordem social e que deveriam ser conduzidas de seu suposto estado de “selvageria” para a “civilização”. Musicalmente, isso significava ensinar a partitura, a apreciar a tradição erudita ocidental e a evitar a música baseada na oralidade, forma dita “primitiva” e “bárbara”.

Na segunda metade do século XIX, a prática orfeônica chegou a toda a Europa e aos Estados Unidos. As escolas adotaram a entoação de canções infantis, militaristas, de amor ao trabalho, à ordem, à religião e à natureza. Outro objetivo era condicionar vozes a não desafinar. Mas o que os mentores do movimento orfeônico consideravam desafinado para a música erudita ocidental não o era em diversos gêneros folclóricos, mesmo europeus, ou em músicas tradicionais não europeias.

Com o canto orfeônico, o ensino de música se tornou mais didático. No aprendizado, notas eram substituídas por letras, números ou sinais de mão. Só depois se ensinava a notação musical em compassos, colcheias etc. Se a proposta parece democratizante por levar cultura e conhecimento musical à maioria da população, impunha o padrão musical estético erudito ocidental como se fosse o único correto. Censurava e reprimia a música popular urbana, considerada inferior. O teor das letras era conservador, cultivando a obediência das classes populares.

O componente nacionalista surgiu, no governo ditatorial (1851-1870) de Napoleão III na França, com os primeiros encontros de corais orfeônicos. Eles eram usados como propaganda política, entoando canções patrióticas e de culto ao líder. Isso desmente a versão de que o canto orfeônico foi produto dos fascismos e do socialismo soviético do século XX. O patriotismo extremista e o caráter antipopular do orfeonismo também foram adotados pelas democracias liberais. Inglaterra e Estados Unidos usaram festivais orfeônicos como propaganda política e buscavam incutir ideais excludentes e elitistas com o canto em escolas, fábricas, igrejas e corporações militares.

O orfeonismo chegou ao Brasil na década de 1870, com pouco sucesso. No começo do século XX, floresceu em Minas Gerais e São Paulo, eixos da política do café-com-leite. Pelo menos desde 1905 há registros de apresentações regulares de corais orfeônicos em Belo Horizonte. Em Piracicaba, os irmãos Lázaro (1871-1951) e Fabiano Lozano (1884-1965), com Honorato Faustino (1867-1948), implementaram o canto coral nas escolas públicas e organizaram conjuntos vocais desde 1907. Na capital paulista, João Gomes Jr. (1868-1963) e Carlos Alberto Gomes Cardim (1875-1938) fizeram o mesmo desde 1911. Em Mogi das Cruzes e São Paulo, João Baptista Julião (1886-1961) reforçou o grupo. Todos eram ligados à oligarquia governante. Produziram manuais didáticos, compuseram músicas para crianças (algo antes inexistente nas escolas), organizaram apresentações públicas de corais escolares e gravaram discos.

A cultura e a música afro-indígenas eram consideradas inferiores à europeia, sendo qualificadas pelo orfeonismo brasileiro, preconceituosamente, como canto gritado, selvagem e primitivo. Em viagem ao Ceará em 1911, Villa-Lobos identificou modelos não ocidentais de afinação em conjuntos populares e folclóricos. Segundo ele, esses conjuntos pareciam sempre “desafinados” por usarem “quartos de tom” (intervalo menor que o semitom europeu). Desde aquela época, o canto orfeônico combatia essas supostas desafinações – na verdade, apenas sistemas musicais diferentes, tão válidos quanto o erudito ocidental. Cerca de 20 anos depois, o artista continuou sua cruzada contra os “defeitos” da música folclórica afro-indígena, que precisava ser eruditizada e ocidentalizada para ser esteticamente aceita pelos mentores do orfeonismo.

O folclore era usado como base para os cantos terem uma marca nacionalista, mas não como valorização da cultura popular. Nas aulas, praticamente não se podia tocar de ouvido e improvisar, e o repertório orfeônico não permitia sambas urbanos (o samba rural era considerado folclore, e, portanto, aceito), maxixes, palavras sensuais ou crítica social. Tudo isso era considerado feio, desafinado, imoral ou perigoso.

Fonte: 
http://www.revistadehistoria.com.br/secao/educacao/erudicao-nas-escolas

Um comentário:

  1. Boa pesquisa, ponha o fundo branco na fonte para ela se tornar legível.

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